Le Cordon BleuFracassa sonho culinário da UnB
O que seria a primeira filial da escola francesa de gastronomia na América Latina virou, em 10 anos, um amontoado de problemas, espaços inúteis e equipamentos de cozinha abandonados no câmpus
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por Renato Alves -
Correio Braziliense - 15/06/2008
.Sete cozinhas, uma padaria, uma confeitaria e dois restaurantes com o que há de mais moderno, chique e caro no universo gastronômico. Câmaras para armazenagem de frutas, verduras e legumes, carnes, peixes, laticínios e congelados. Despensa com prateleiras em aço inox. Tudo deveria estar funcionando, desde 2001, no subsolo de um prédio da Universidade de Brasília (UnB), reformado por R$ 300 mil para abrigar a parafernália. A obra acabou realizada com dinheiro público. Mas, ao contrário do anunciado pela instituição de ensino superior, os aparelhos não foram comprados e o espaço nunca atendeu aos gourmets e candidatos a chefs.
O desperdício é fruto de um malsucedido empreendimento da UnB, propagado há 10 anos como um marco na história da universidade e do turismo brasiliense. A promessa era de que o investimento serviria para abrir e fazer funcionar a primeira filial permanente na América Latina da mais importante escola de gastronomia do mundo, a francesa
Le Cordon Bleu (
leia: Para Saber Mais). Os cursos de formação, com duração de dois anos, nunca foram ministrados. E o subsolo, de 579 metros quadrados, em vez de cozinhas para aulas de culinária, alunos e professores, hoje abriga morcegos, aranhas, animais peçonhentos.
Nesse ambiente, sem ventilação, acabamento e com muita poeira, estão encaixotados os aparelhos da cozinha profissional do extinto
Instituto Gastronômico Brasileiro (IGB). Os itens foram entregues à UnB em 2001, justamente por causa do fim do IGB. O instituto chegou a sediar as poucas aulas da Le Cordon Bleu na capital brasileira, quando funcionava no clube Associação Atlética Banco de Brasília (AABR). Mas as atividades da escola francesa em Brasília não passaram de demonstrações e degustações para gourmets, em novembro e dezembro de 2000. A parceria que resultaria na Le Cordon Bleu brasiliense havia sido firmada pelas direções da escola francesa, da UnB e do IGB, em 1998. Na época, o projeto ganhou grande repercussão na mídia. Assim como o início das aulas na AABR.
Madeira amazônica
Para receber aquela que seria a maior unidade da Le Cordon Bleu — então com sete filiais —, o prédio do
Centro de Excelência em Turismo (CET) da UnB passou por uma profunda reestruturação. Iniciada em 1998 com previsão de acabar dois anos depois, a obra foi concluída no fim de 2005. Com ela, a arquitetura, diferente dos demais edifícios do câmpus, passou a chamar ainda mais atenção. Em uma área de 4,4 mil metros quadrados, o CET tem um módulo central e quatro periféricos, todos na forma de octógono (oito lados), com estrutura em madeira amazônica carapanaúba, conhecida como sapupema.
Além dos jardins externos, foram introduzidas áreas verdes no interior do complexo. Naquele tempo, a direção da UnB divulgou que tudo havia sido feito para receber os equipamentos da Le Cordon Bleu. Como os administradores da universidade esperavam um grande fluxo de pessoas e carros em função da escola de culinária, os acessos ao CET receberam passarelas e, em frente à entrada principal, um espaço para embarque e desembarque de alunos, professores, funcionários e visitantes. Foram construídos quatro estacionamentos para 130 carros.
Das dependências destinadas à Le Cordon Bleu candanga, ficou totalmente pronto apenas o restaurante. Construído no térreo, com piso e pilastras feitos de madeira amazônica, ele teria capacidade para 120 pessoas e serviria de sala de aula e teste dos alunos. No espaço, seriam oferecidas as delícias das cozinhas francesa, italiana, tailandesa, indiana, além da brasileira, produzidas por chefs experientes e aprendizes.
Assessor da direção do CET, o professor
Domingos Sávio Spezia alega que o contrato entre a UnB, a Le Cordon Bleu e o IGB não passava de um “contrato de intenções”. Os idealizadores do projeto anunciaram que ele custaria US$ 2 milhões, pouco mais de R$ 4 milhões na época. O valor dizia respeito aos aparelhos necessários à montagem das cozinhas e salas de aulas. No entanto, segundo Spezia, o contrato não deixava claro quanto cada instituição deveria desembolsar nem trazia prazos e previsão de multas para descumprimento de cláusulas. “Os cursos seriam abertos de acordo com a demanda”, explica o assessor. Como a UnB e a Le Cordon Bleu nunca desembolsaram um centavo para a compra de materiais, a idéia acabou esquecida.
Não haveria curso gratuito na Le Cordon Bleu de Brasília. Cerca de 3 mil pessoas chegaram a se inscrever para as especializações na área de culinária. Estavam dispostas a pagar até R$ 20 mil para aprender os segredos das melhores cozinhas do mundo em dois anos. As vagas eram limitadas, 64 por semestre. A seleção seria feita por três especialistas: um da Le Cordon Bleu, outro da UnB e outro do IGB. Poderiam concorrer jovens com mais de 17 anos, de ambos os sexos, com segundo grau completo. Era recomendável o domínio do inglês e do francês, pois muitos dos professores viriam das escolas Cordon Bleu espalhadas pelo mundo.
Especializações
Domingos Spezia nega que tenha havido desperdício no projeto da filial da Le Cordon Bleu. “O prédio do CET foi restaurado porque estava abandonado, quase caindo. A Le Cordon Bleu realmente não funcionou, mas o CET oferece cursos de especialização e de mestrado na área de culinária. Estamos perto de ter doutorado”, afirma. Spezia destaca ainda que o CET também tem cursos de hotelaria e turismo.
Representante da filial da Le Cordon Bleu, Carla Tenser confirma que o projeto não foi abandonado: “Ainda mantemos conversas com os donos da escola na França. Eles têm interesse em criar uma unidade no Brasil”. Ela e Spezia dizem que a falta de liberação de recursos por parte da Le Cordon Bleu e da UnB ocorreu por “uma série de desencontros”, além da ausência de normas no contrato.
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Para saber mais
Uma grife de quatro séculos
A expressão cordon bleu remonta a 1578, com a fundação da Ordem dos Cavaleiros do Espírito Santo, que tinha essa denominação porque a cruz do Espírito Santo era sustentada por uma fita azul. As cerimônias da ordem eram acompanhadas por banquetes. No fim do século 19, Marthe Distel editou o semanário A cozinha cordon bleu.
Em 1984, André J. Cointreau, descendente das famílias proprietárias do Licor Cointreau e do Conhaque Rémy Martin, assumiu o
Le Cordon Bleu de Paris. Ele iniciou uma trajetória de expansão que incluiu a reabertura da filial de Londres, em 1990, e a instalação de afiliadas no Japão, Estados Unidos e Austrália. Hoje, são 26 filiais.
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Memória
Trajetória de expectativas
1998
A Universidade de Brasília (UnB) anuncia um acordo para a construção do que seria a primeira filial da escola francesa de gastronomia Le Cordon Bleu no Brasil. A parceria é firmada pela universidade, pela Escola Francesa e pelo Instituto Gastronômico Brasileiro (IGB), com sede no Lago Sul. As aulas dos cursos de especialização seriam ministradas no próprio câmpus da UnB.
2000Começam em novembro os cursos curtos de gastronomia para amadores nas instalações provisórias do Clube Associação Atlética Banco de Brasília (AABR), no Setor de Clubes Esportivos Sul. Três mil pessoas se inscrevem para as oficinas de culinária e administração de restaurantes, com dois anos de duração. As aulas se iniciam em 2001 na UnB, mas os cursos rápidos são suspensos em dezembro do mesmo ano.
2004A UnB inicia reformas no prédio do Centro de Excelência em Turismo (CET), no próprio câmpus. Em outubro, a administração superior anuncia que a obra está quase concluída. O espaço é ampliado e preparado para receber os cursos e alunos da escola francesa Le Cordon Bleu. O valor estimado da obra: R$ 301.702.
2005Em 21 de outubro, o então reitor
Lauro Morhy e seu vice,
Timothy Mulholland, reinauguram o prédio do CET. A dupla garante à comunidade acadêmica que o local está pronto para receber as aulas da Le Cordon Bleu. Mas, no lugar da obra, não há a estrutura necessária para dar início aos cursos de culinária.